Ir direto para menu de acessibilidade.
Página inicial > Últimas Notícias > Como se fosse uma crônica para o Dia do Escritor
Início do conteúdo da página
Comemoração

Como se fosse uma crônica para o Dia do Escritor

Por Paulo Aires | Publicado: Segunda, 25 de Julho de 2022, 08h49 | Última atualização em Terça, 26 de Julho de 2022, 09h22

O ano não importa. O telefone toca. Ainda tínhamos telefone convencional. Preciso que você escreva o prefácio do meu livro, pede a voz do outro lado. Uma mulher de cujo rosto eu não conhecia o menor detalhe. Não havia redes digitais. Ela, em Palmas; eu, no interior do Tocantins. Conversamos outras vezes. Discutimos a obra. Celebramos acordos. Entreguei o texto. O telefone toca, Beatriz (nome fictício) agradece em tom de alegria. Outra vez, a literatura chama...

Há quem diga que a literatura está morta ou com os dias contados. Vivo me perguntando por que a literatura zomba da usura do tempo, vence séculos e séculos, subverte limites territoriais, e permanece viva, insurrecta – testemunha da condição humana, segue seduzindo, atiçando gerações e gerações de leitores. Carlos Drummond de Andrade sabia muito bem que a literatura é um denso mergulho na fantasia criadora, um ofício que não se exila dos dramas humanos, como se uma voz secreta sempre estivesse a nos sacudir: Penetra surdamente no reino das palavras/ Chega mais perto e contempla as palavras.

Por que você escreve? Isso eu perguntei ao cronista Célio Pedreira, que também é poeta, músico e professor do curso de Medicina da UFT, ao que ele responde: “Escrevo para dar voz aos silêncios que minha alma abriga, para viver os gritos que minha alma não suporta mais abrigar. Escrevo por conta de uma gente que anda só, teimando ser simples e com uma retidão ímpar, para viver com minha gente os caminhos ásperos de um sertão de dentro. Escrevo para enfrentar o óbvio que se anuncia como novo, para fazer trincheira contra as farsas de nosso tempo, para tocar o sino de um templo que o tempo haverá de nos ofertar boas novas.

Um encontro sempre prorrogado. Beatriz me enviou exemplares do livro, com prefácio assinado por mim. Seguimos sem nos conhecer pessoalmente. O encontro haveria de acontecer. O telefone toca. Beatriz atende. Estava feliz com o lançamento de seu primeiro livro. Agradeço o envio dos exemplares. Vamos nos encontrar, isso é certo – disse ela.

Muitos são os desafios de quem escreve, de quem habita o labirinto da literatura, exercício da solidão. A tela ou a página em branco. Horas e horas, dias e dias a fio, em busca de capturar a palavra, a frase, ou a trama desejada. Outra vez, uma irrecusável ilustração de Drummond: Ponho-me a escrever teu nome/ com letras de macarrão/ Desgraçadamente falta uma letra/ uma letra somente/ para acabar teu nome!

Por que você escreve? Lita Maria, escritora com um romance publicado pela EdUFT, editora da UFT, responde: “Escrevo porque é vital acessar um lugar caótico escondido dentro de mim. De forma apaixonada, pungente e decisiva a escrita emerge para me salvar. A minha escrita é o retrato dos meus sentimentos mais genuínos, belos, crus ou inquietantes. É uma estrada necessária. Preciso percorrê-la.”

Um bom tempo depois da publicação do livro da Beatriz, estava eu na casa de uma amiga em Palmas. Na estante, um exemplar do livro de minha amiga que eu ainda não conhecia pessoalmente. Saquei o livro da prateleira e perguntei: você conhece a Beatriz? Minha amiga respondeu: Sim, ela mudou-se. Perdemos o contato. Na minha memória, o telefone tocando, a voz de Beatriz. O desencontro. O silêncio. O livro de Beatriz.

Chego a pensar que em nossa vida de leitores, a literatura assume a roupagem de um telefone intermitente: revela encontros e desencontros, festas e pesadelos, dores e alegrias - é testemunha do que fomos e somos e seremos. Uma espécie de pátria do desassossego, do espanto, da diversidade e da beleza. A literatura é a memória acinzentada, o baú obscuro da nossa vida íntima e coletiva, o caderno das nossas lutas, delírios e paixões.

Beatriz, Célio Pedreira, Lita Maria e tantas e tantos magos da palavra fazem parte dessa sorte de legião insubmissa, para quem a palavra continua sendo uma possibilidade privilegiada de denunciar o que dói e compartilhar o que dá alegria (Eduardo Galeano).

Escrever vale ou não a pena? Fico com esta assertiva do contista Eric Nepomuceno: No fundo, é isso: qualquer linha escrita na mais irremediável solidão se justificará para sempre, desde que tenha alma e substância. Desde que seja capaz de levar a um leitor – um único que seja – a vertigem de uma emoção verdadeira.

Segunda-feira, 25 de julho de 2022, Dia do Escritor, às margens do Rio Tocantins, sob o sol e o vento do sertão - o telefone continua tocando. E a literatura, festivamente, acena para todos nós.

 

registrado em:
marcador(es): Home
Fim do conteúdo da página